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Leia o conto “Passei por um sonho”, do escritor angolano José Eduardo Agualusa (1960- ).
1 Começou com um sonho. Afinal, é como começa quase tudo. Justo Santana, enfermeiro de profissão, sonhou um pássaro.
— Passei por um sonho — disse à mulher quando esta acordou —, e vi um pássaro.
A mulher quis saber que espécie de pássaro, mas Justo Santana não foi capaz de precisar. Era um pássaro grande, grave, branco como um ferro incandescente, e com umas asas ainda mais brilhosas, que o dito pássaro usava sempre abertas, de tal maneira que fazia lembrar Jesus Cristo pregado na cruz.
— Fui sonhado por ti — disse-lhe o pássaro —, com o fim de esclarecer o espírito dos Homens e de trazer a liberdade a este pobre país.
5 O discurso do pássaro assustou o enfermeiro, homem simples, tímido, avesso a confrontos, e sem qualquer vocação para a política.
— Foi apenas um sonho — disse à mulher —, um sonho estúpido.
Na noite seguinte, porém, o pássaro voltou a aparecer-lhe. Estava ainda mais branco, mais trágico, e parecia aborrecido com o desinteresse do enfermeiro:
— Ordeno-te que vás por esse país fora e digas a todos os homens que se preparem para um mundo novo. Os brancos vão partir e os pretos ocuparão as casas, os palácios, as igrejas e os quartéis, e a liberdade há de reinar para sempre.
Dizendo isto sacudiu as asas e as suas penas espalharam-se pelo quarto:
10 — Com estas minhas penas hás de curar os enfermos — disse o pássaro —, e assim até os mais incrédulos acreditarão em ti e seguirão os teus passos.
Quando Justo Santana despertou o quarto brilhava com o esplendor das penas. Na manhã desse mesmo dia o enfermeiro serviu-se de uma delas para curar um homem com elefantíase e à tardinha devolveu a vista a um cego. Passado apenas um mês a sua fama de santo e milagreiro já se espalhara muito para além das margens do Rio Zaire e à porta da sua casa ia crescendo uma multidão de padecentes. [...]
Justo Santana colocava na boca dos enfermos uma pena do pássaro, como se fosse uma hóstia, e estes imediatamente ganhavam renovado alento. Enquanto fazia isto o enfermeiro repetia os discursos do pássaro, incapaz de compreender a fúria daquelas palavras e o alcance delas. Todas as noites sonhava com a ave e todas as noites esta o forçava a decorar um discurso novo, após o que sacudia as asas, espalhando pelo ar morto do quarto as penas milagrosas:
— Se esse pássaro continuar assim tão generoso — disse Justo Santana à mulher —, ainda o veremos transformado numa alma despenada.
Isto durou um ano. Então, numa manhã de cacimbo1, apareceram quatro soldados à porta da casa, afastaram com rancor a multidão de desvalidos, e levaram Justo Santana. O infeliz foi acusado de fomentar o terrorismo e a sublevação, e desterrado para uma praia remota, em pleno deserto do Namibe, onde passou a exercer o ofício de faroleiro.
15 Quando o encontrei, muitos anos depois, em Luanda2, ele falou-me desse desterro com nostalgia:
— Foi a melhor época da minha vida.
Encontrei-o doente, estendido numa larga cama de ferro, sob lençóis muito brancos. No quarto havia apenas a cama e um pequeno crucifixo preso à parede. Na sala ao lado os devotos rezavam murmurosas ladainhas. Aquela era a sede da Igreja do Divino Espírito. Não tinha sido nada fácil chegar até junto do enfermeiro: os seus seguidores guardavam-no corno a uma relíquia — na verdade mantinham-no preso ali, naquele quarto, quase isolado do mundo, desde 19753.
A melhor época da vida de Justo Santana terminou de forma trágica, numa noite de tempestade, quando um bando de aves migratórias caiu sobre o farol. Enlouquecidas pela luz as avezinhas batiam contra o cristal até quebrarem as asas, sendo depois arrastadas pelo vento. Isto está sempre a acontecer. Milhares de aves migratórias morrem todos os anos traídas pelo fulgor dos faróis. Naquela noite, desrespeitando as normas, Justo Santana foi em socorro das aves e desligou o farol. Teve pouca sorte: um barco com tropas, de regresso à metrópole, perdeu-se na escuridão e encalhou na praia. Dessa vez o enfermeiro foi julgado, condenado a quinze anos de prisão, e enviado para o Tarrafal4, em Cabo Verde. Foi solto com a Revolução de Abril5 e regressou a Angola.
Quando o visitei, antes de me ir embora, quis saber se o pássaro ainda lhe frequentava os sonhos. Ele olhou em redor para se certificar de que estávamos sozinhos:
20 — Estrangulei-o — segredou com um sorriso cúmplice —, mas enquanto eu for vivo não conte isto a ninguém.
(Rita Chaves (org.). Contos africanos dos países de língua portuguesa, 2009.)
1 cacimbo: estação com elevado índice de umidade caracterizada pela descida gradual da temperatura e pelo aumento da nebulosidade.
2 Luanda: capital de Angola.
3 Angola tornou-se um país independente em 1975.
4 Tarrafal: antiga colônia penal portuguesa.
5 Ocorrida em 25 de abril de 1974, a Revolução de Abril, também conhecida como Revolução dos Cravos, restabeleceu a democracia em Portugal, abrindo caminho para o processo de descolonização dos países da África.
Observa-se o emprego de palavra formada com prefixo que exprime ideia de negação no trecho:
“assim até os mais incrédulos acreditarão em ti e seguirão os teus passos” (10º parágrafo).
“um barco com tropas, de regresso à metrópole, perdeu-se na escuridão e encalhou na praia” (18º parágrafo).
“homem simples, tímido, avesso a confrontos, e sem qualquer vocação para a política” (5º parágrafo).
“Não tinha sido nada fácil chegar até junto do enfermeiro” (17º parágrafo).
“A mulher quis saber que espécie de pássaro, mas Justo Santana não foi capaz de precisar” (3º parágrafo).
No termo “incrédulos”, há a presença do prefixo “in”, que indica a ideia de negação. Esse termo se refere àqueles que não são crédulos, ou seja, que não creem.
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