Questão 4 - 1ª Fase - Unesp 2025

Gabarito

Questão 4

Objetiva
4

Leia o conto “Passei por um sonho”, do escritor angolano José Eduardo Agualusa (1960- ). 

1     Começou com um sonho. Afinal, é como começa quase tudo. Justo Santana, enfermeiro de profissão, sonhou um pássaro.

     — Passei por um sonho — disse à mulher quando esta acordou —, e vi um pássaro.

     A mulher quis saber que espécie de pássaro, mas Justo Santana não foi capaz de precisar. Era um pássaro grande, grave, branco como um ferro incandescente, e com umas asas ainda mais brilhosas, que o dito pássaro usava sempre abertas, de tal maneira que fazia lembrar Jesus Cristo pregado na cruz.

     — Fui sonhado por ti — disse-lhe o pássaro —, com o fim de esclarecer o espírito dos Homens e de trazer a liberdade a este pobre país.

5     O discurso do pássaro assustou o enfermeiro, homem simples, tímido, avesso a confrontos, e sem qualquer vocação para a política.

     — Foi apenas um sonho — disse à mulher —, um sonho estúpido.

     Na noite seguinte, porém, o pássaro voltou a aparecer-lhe. Estava ainda mais branco, mais trágico, e parecia aborrecido com o desinteresse do enfermeiro:

     — Ordeno-te que vás por esse país fora e digas a todos os homens que se preparem para um mundo novo. Os brancos vão partir e os pretos ocuparão as casas, os palácios, as igrejas e os quartéis, e a liberdade há de reinar para sempre.

     Dizendo isto sacudiu as asas e as suas penas espalharam-se pelo quarto:

10   — Com estas minhas penas hás de curar os enfermos — disse o pássaro —, e assim até os mais incrédulos acreditarão em ti e seguirão os teus passos.

     Quando Justo Santana despertou o quarto brilhava com o esplendor das penas. Na manhã desse mesmo dia o enfermeiro serviu-se de uma delas para curar um homem com elefantíase e à tardinha devolveu a vista a um cego. Passado apenas um mês a sua fama de santo e milagreiro já se espalhara muito para além das margens do Rio Zaire e à porta da sua casa ia crescendo uma multidão de padecentes. [...]

     Justo Santana colocava na boca dos enfermos uma pena do pássaro, como se fosse uma hóstia, e estes imediatamente ganhavam renovado alento. Enquanto fazia isto o enfermeiro repetia os discursos do pássaro, incapaz de compreender a fúria daquelas palavras e o alcance delas. Todas as noites sonhava com a ave e todas as noites esta o forçava a decorar um discurso novo, após o que sacudia as asas, espalhando pelo ar morto do quarto as penas milagrosas:

     — Se esse pássaro continuar assim tão generoso — disse Justo Santana à mulher —, ainda o veremos transformado numa alma despenada.

     Isto durou um ano. Então, numa manhã de cacimbo1, apareceram quatro soldados à porta da casa, afastaram com rancor a multidão de desvalidos, e levaram Justo Santana. O infeliz foi acusado de fomentar o terrorismo e a sublevação, e desterrado para uma praia remota, em pleno deserto do Namibe, onde passou a exercer o ofício de faroleiro.

15   Quando o encontrei, muitos anos depois, em Luanda2, ele falou-me desse desterro com nostalgia:

     — Foi a melhor época da minha vida.

     Encontrei-o doente, estendido numa larga cama de ferro, sob lençóis muito brancos. No quarto havia apenas a cama e um pequeno crucifixo preso à parede. Na sala ao lado os devotos rezavam murmurosas ladainhas. Aquela era a sede da Igreja do Divino Espírito. Não tinha sido nada fácil chegar até junto do enfermeiro: os seus seguidores guardavam-no corno a uma relíquia — na verdade mantinham-no preso ali, naquele quarto, quase isolado do mundo, desde 19753.

     A melhor época da vida de Justo Santana terminou de forma trágica, numa noite de tempestade, quando um bando de aves migratórias caiu sobre o farol. Enlouquecidas pela luz as avezinhas batiam contra o cristal até quebrarem as asas, sendo depois arrastadas pelo vento. Isto está sempre a acontecer. Milhares de aves migratórias morrem todos os anos traídas pelo fulgor dos faróis. Naquela noite, desrespeitando as normas, Justo Santana foi em socorro das aves e desligou o farol. Teve pouca sorte: um barco com tropas, de regresso à metrópole, perdeu-se na escuridão e encalhou na praia. Dessa vez o enfermeiro foi julgado, condenado a quinze anos de prisão, e enviado para o Tarrafal4, em Cabo Verde. Foi solto com a Revolução de Abril5 e regressou a Angola.

     Quando o visitei, antes de me ir embora, quis saber se o pássaro ainda lhe frequentava os sonhos. Ele olhou em redor para se certificar de que estávamos sozinhos:

20   — Estrangulei-o — segredou com um sorriso cúmplice —, mas enquanto eu for vivo não conte isto a ninguém.

(Rita Chaves (org.). Contos africanos dos países de língua portuguesa, 2009.)

1 cacimbo: estação com elevado índice de umidade caracterizada pela descida gradual da temperatura e pelo aumento da nebulosidade.
2 Luanda: capital de Angola.
3 Angola tornou-se um país independente em 1975.
4 Tarrafal: antiga colônia penal portuguesa.
5 Ocorrida em 25 de abril de 1974, a Revolução de Abril, também conhecida como Revolução dos Cravos, restabeleceu a democracia em Portugal, abrindo caminho para o processo de descolonização dos países da África.

Emprega-se verbo no presente do indicativo com valor de futuro no trecho:

Alternativas

  1. A

    “a liberdade há de reinar para sempre” (8º parágrafo).

  2. B

    “Milhares de aves migratórias morrem todos os anos” (18º parágrafo).

  3. C

    “Isto está sempre a acontecer” (18º parágrafo).

  4. D

    “enquanto eu for vivo não conte isto a ninguém” (20º parágrafo).

  5. E

    “Afinal, é como começa quase tudo” (1º parágrafo).

Gabarito:
    A

Na locução verbal “há de reinar”, o verbo auxiliar “haver” está conjugado no presente do indicativo, porém ele apresenta valor de futuro, já que a locução pode ser trocada por um único verbo conjugado no futuro do presente: a liberdade reinará para sempre.

4

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