Questão 2 - Prova Medicina - FMABC 2025

Gabarito

Questão 2

Objetiva
2

Leia o conto "Os passarinhos", de Aluísio Azevedo.

1     Era uma rica tarde de novembro. O sol acabava de retirar-se naquele instante, mas a terra, toda enrubescida, palpitava ainda com o calor dos seus últimos beijos. [...] A noite abria lentamente no espaço as suas asas de paz, úmidas de orvalho, prenhes de estrelas que ainda mal se denunciavam numa palpitação difusa. [...] De cada casa vinha um rumor alegre de família que reúne para jantar, e, junto com latidos de cães e choros de criança, ouvia-se o contente palavrear dos trabalhadores em descanso, ao lado da mulher e dos filhos.

2     Entretanto, um padre ainda moço, depois de passear silenciosamente à sombra das árvores, foi assentar-se, triste e preocupado, nos restos de uma fonte de pedra, cuja pobreza as ervas disfarçavam com a opulência da sua folhagem viçosa e florida. [...]

3     E, assim, vinham-lhe à memória, com uma reminiscência dolorosa, todas as suas aspirações da infância. Ah! nesse tempo, quanta esperança no futuro!... [...] Ah! nesse tempo feliz, ele era expansivo e risonho. Nesse tempo ele era bom.

4     Mas continuou a pensar, cruzando sobre o fundo estômago as mãos finas e descoradas, enterraram-me numa casa abominável, para ser padre. Deram-me depois uma mortalha negra e disseram-me: “Estuda, medita, reza, e faze-te um santo! [...] Fecha-te ao prazer e à ternura, fecha-te enfim dentro da tua fé, como se te fechasses dentro de um túmulo!” [...]

5     Desde que o destinaram a padre, sentia-se arrastado para a tristeza e para a solidão [...]. Não queria a convivência dos outros homens, porque todos tinham e desfrutavam aquilo que lhe era vedado — o amor, a alegria, a doce consolação da família. [...] Desejava refugiar-se covardemente na velhice como num abrigo seguro contra as paixões mundanas.

6     Sofria ímpetos de arrancar aquele seu coração importuno e esmagá-lo debaixo dos pés. Não se sentia capaz de domar a matilha que lhe rosnava no sangue; sobressaltava-se com a ideia de sucumbir a uma revolta mais forte dos nervos, e só a lembrança de que seria capaz de uma paixão sensual sacudia-o todo com um frio tremor de febre.

7     — Todavia... replicou-lhe do íntimo da consciência uma voz meiga, medrosa, quase imperceptível — todavia, o amor deve ser bem bom!...

8     E dous fios compridos escorreram pelas faces pálidas do padre.

9     Nisto, o canto de um passarinho fê-lo olhar para cima. Na embalsamada cúpula de verdura que cobria a fonte o inocente intruso trinava ao lado da sua companheira.

10 O moço estremeceu e ficou a olhar fixamente para eles. Os dous velhaquinhos, descuidosos na sua felicidade, conservavam-se muito unidos, como se estivessem cochichando segredos de amor. [...]

11     Então, o jovem eclesiástico, tomado de uma vertigem, levantou o guarda-chuva e com uma pancada lançou por terra o amoroso par.

12     Os pobrezitos, ainda palpitantes de amor, caíram, estrebuchando a seus pés.

13     O padre voltou o rosto e afastou-se silenciosamente.

14     No horizonte esbatia-se a última réstia de luz e o sino de uma torre distante soluçava ainda o toque de Ave-Maria.

(Aluísio Azevedo. Demônios, 2007.)

A voz do protagonista mescla-se à voz do narrador, configurando o que se convencionou chamar de discurso indireto livre, em:

Alternativas

  1. A

    “E, assim, vinham-lhe à memória, com uma reminiscência dolorosa, todas as suas aspirações da infância. Ah! nesse tempo, quanta esperança no futuro!...” (3º parágrafo)

  2. B

    “O sol acabava de retirar-se naquele instante, mas a terra, toda enrubescida, palpitava ainda com o calor dos seus últimos beijos.” (1º parágrafo)

  3. C

    “— Todavia... replicou-lhe do íntimo da consciência uma voz meiga, medrosa, quase imperceptível — todavia, o amor deve ser bem bom!...” (7º parágrafo)

  4. D

    “Nisto, o canto de um passarinho fê-lo olhar para cima. Na embalsamada cúpula de verdura que cobria a fonte o inocente intruso trinava ao lado da sua companheira.” (9º parágrafo)

  5. E

    “No horizonte esbatia-se a última réstia de luz e o sino de uma torre distante soluçava ainda o toque de Ave-Maria.” (14º parágrafo)

Gabarito:
    A

O discurso indireto livre corresponde a uma fusão da voz da personagem com a voz do narrador. Nesse sentido, trata-se de um recurso textual em que os pensamentos das personagens são inseridos discretamente no fluxo narrativo. É possível depreender o uso dessa estrutura no trecho “Ah! nesse tempo, quanta esperança no futuro!”, usado para explicitar ao leitor o sentimento saudosista da personagem ao relembrar seu passado. 

2

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