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Leia o conto "Os passarinhos", de Aluísio Azevedo.
1 Era uma rica tarde de novembro. O sol acabava de retirar-se naquele instante, mas a terra, toda enrubescida, palpitava ainda com o calor dos seus últimos beijos. [...] A noite abria lentamente no espaço as suas asas de paz, úmidas de orvalho, prenhes de estrelas que ainda mal se denunciavam numa palpitação difusa. [...] De cada casa vinha um rumor alegre de família que reúne para jantar, e, junto com latidos de cães e choros de criança, ouvia-se o contente palavrear dos trabalhadores em descanso, ao lado da mulher e dos filhos.
2 Entretanto, um padre ainda moço, depois de passear silenciosamente à sombra das árvores, foi assentar-se, triste e preocupado, nos restos de uma fonte de pedra, cuja pobreza as ervas disfarçavam com a opulência da sua folhagem viçosa e florida. [...]
3 E, assim, vinham-lhe à memória, com uma reminiscência dolorosa, todas as suas aspirações da infância. Ah! nesse tempo, quanta esperança no futuro!... [...] Ah! nesse tempo feliz, ele era expansivo e risonho. Nesse tempo ele era bom.
4 Mas continuou a pensar, cruzando sobre o fundo estômago as mãos finas e descoradas, enterraram-me numa casa abominável, para ser padre. Deram-me depois uma mortalha negra e disseram-me: “Estuda, medita, reza, e faze-te um santo! [...] Fecha-te ao prazer e à ternura, fecha-te enfim dentro da tua fé, como se te fechasses dentro de um túmulo!” [...]
5 Desde que o destinaram a padre, sentia-se arrastado para a tristeza e para a solidão [...]. Não queria a convivência dos outros homens, porque todos tinham e desfrutavam aquilo que lhe era vedado — o amor, a alegria, a doce consolação da família. [...] Desejava refugiar-se covardemente na velhice como num abrigo seguro contra as paixões mundanas.
6 Sofria ímpetos de arrancar aquele seu coração importuno e esmagá-lo debaixo dos pés. Não se sentia capaz de domar a matilha que lhe rosnava no sangue; sobressaltava-se com a ideia de sucumbir a uma revolta mais forte dos nervos, e só a lembrança de que seria capaz de uma paixão sensual sacudia-o todo com um frio tremor de febre.
7 — Todavia... replicou-lhe do íntimo da consciência uma voz meiga, medrosa, quase imperceptível — todavia, o amor deve ser bem bom!...
8 E dous fios compridos escorreram pelas faces pálidas do padre.
9 Nisto, o canto de um passarinho fê-lo olhar para cima. Na embalsamada cúpula de verdura que cobria a fonte o inocente intruso trinava ao lado da sua companheira.
10 O moço estremeceu e ficou a olhar fixamente para eles. Os dous velhaquinhos, descuidosos na sua felicidade, conservavam-se muito unidos, como se estivessem cochichando segredos de amor. [...]
11 Então, o jovem eclesiástico, tomado de uma vertigem, levantou o guarda-chuva e com uma pancada lançou por terra o amoroso par.
12 Os pobrezitos, ainda palpitantes de amor, caíram, estrebuchando a seus pés.
13 O padre voltou o rosto e afastou-se silenciosamente.
14 No horizonte esbatia-se a última réstia de luz e o sino de uma torre distante soluçava ainda o toque de Ave-Maria.
(Aluísio Azevedo. Demônios, 2007.)
A voz do protagonista mescla-se à voz do narrador, configurando o que se convencionou chamar de discurso indireto livre, em:
“E, assim, vinham-lhe à memória, com uma reminiscência dolorosa, todas as suas aspirações da infância. Ah! nesse tempo, quanta esperança no futuro!...” (3º parágrafo)
“O sol acabava de retirar-se naquele instante, mas a terra, toda enrubescida, palpitava ainda com o calor dos seus últimos beijos.” (1º parágrafo)
“— Todavia... replicou-lhe do íntimo da consciência uma voz meiga, medrosa, quase imperceptível — todavia, o amor deve ser bem bom!...” (7º parágrafo)
“Nisto, o canto de um passarinho fê-lo olhar para cima. Na embalsamada cúpula de verdura que cobria a fonte o inocente intruso trinava ao lado da sua companheira.” (9º parágrafo)
“No horizonte esbatia-se a última réstia de luz e o sino de uma torre distante soluçava ainda o toque de Ave-Maria.” (14º parágrafo)
O discurso indireto livre corresponde a uma fusão da voz da personagem com a voz do narrador. Nesse sentido, trata-se de um recurso textual em que os pensamentos das personagens são inseridos discretamente no fluxo narrativo. É possível depreender o uso dessa estrutura no trecho “Ah! nesse tempo, quanta esperança no futuro!”, usado para explicitar ao leitor o sentimento saudosista da personagem ao relembrar seu passado.
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