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Texto 1
O IMORTAL
1 MEU PAI NASCEU em 1600...
— Perdão, em 1800, naturalmente...
— Não, senhor, replicou o dr. Leão, de um modo grave e triste; foi em 1600.
Estupefação dos ouvintes, que eram dois, o coronel Bertioga, e o tabelião da vila, João Linhares. Quanto
5 à data, não tenho dúvida em dizer que foi no ano de 1855. Tal era o quadro e o momento, quando o dr. Leão insistiu
nas primeiras palavras da narrativa.
— Não, senhor; nasceu em 1600.
Médico homeopata — a homeopatia começava a entrar nos domínios da nossa civilização —, este dr. Leão
chegara à vila, dez ou doze dias antes, provido de boas cartas de recomendação, pessoais e políticas. Contava
10 trinta anos, tinha um princípio de calva, olhar baço e mãos episcopais. Andava propagando o novo sistema. Os
dois ouvintes continuavam pasmados. A dúvida fora posta pelo dono da casa, o coronel Bertioga, e o tabelião
ainda insistiu no caso, mostrando ao médico a impossibilidade de ter o pai nascido em 1600. Duzentos e
cinquenta e cinco anos antes! Dois séculos e meio! Era impossível. Então, que idade tinha ele? e de que idade
morreu o pai?
15 — Não tenho interesse em contar-lhes a vida de meu pai, respondeu o dr. Leão. Falaram-me no macróbio
que mora nos fundos da matriz; disse-lhes que, em negócio de macróbios, conheci o que há mais espantoso no
mundo, um homem imortal...
— Mas seu pai não morreu? disse o coronel.
— Morreu.
20 — Logo, não era imortal, concluiu o tabelião triunfante. Imortal se diz quando uma pessoa não morre, mas
seu pai morreu.
— Querem ouvir-me?
— Homem, pode ser, observou o coronel meio abalado. O melhor é ouvir a história. Só o que digo é que
mais velho do que o Capataz nunca vi ninguém. Está mesmo caindo de maduro. Seu pai devia estar também
25 muito velho...?
— Tão moço como eu. Mas para que me fazem perguntas soltas? Para se espantarem cada vez mais,
porque na verdade a história de meu pai não é fácil de crer. Posso contá-la em poucos minutos.
— MEU PAI NASCEU em 1600, na cidade de Recife.
Tomou meu pai o hábito, no convento de Iguaraçu, onde ficou até 1639, ano em que os holandeses, ainda
30 uma vez, assaltaram a povoação. Não se lembrava ele, quando me contou essas coisas, não se lembrava mais
do número de dias que despendeu sozinho por lugares ermos, fugindo de propósito ao povoado, não querendo
ir a Olinda ou Recife, onde estavam os holandeses. Para encurtar razões, foi ter a uma aldeia de gentio, que
o recebeu muito bem, com grandes carinhos e obséquios. Os índios ficaram embeiçados por ele, mormente
o chefe, um guerreiro velho, bravo e generoso, que chegou a dar-lhe a filha em casamento. Deixou-se estar,
35 pois, na aldeia, o gentio, até o ano de 1642, em que o guerreiro faleceu. Este caso do falecimento é que é
maravilhoso: peço-lhes a maior atenção.
UMA NOITE, o chefe indígena — chamava-se Pirajuá — foi à rede de meu pai, anunciou-lhe que tinha de
morrer, pouco depois de nascer o sol, e que ele estivesse pronto para acompanhá-lo fora, antes do momento
último.
40 E, à luz de uma fogueira expirante, viu-lhe meu pai a expressão intimativa do rosto, e um certo ar diabólico,
em todo caso extraordinário, que o aterrou. Levantou-se, acompanhou-o na direção de um córrego.
E andaram, andaram, até que Pirajuá disse:
— Aqui.
— Arreda aquela pedra, disse o guerreiro, apontando para a terceira, que era a maior.
45 Meu pai levantou-se e foi à pedra.
— Cava o chão, disse o guerreiro.
Meu pai foi buscar uma lasca de pau, uma taquara ou não sei quê, e começou a cavar o chão. Já então estava
curioso de ver o que era. Tinha-lhe nascido uma ideia — algum tesouro enterrado, que o guerreiro, receoso de
morrer, quisesse entregar-lhe. Cavou, cavou, cavou, até que sentiu um objeto rijo; era um vaso tosco, talvez uma
50 igaçaba. Não o tirou, não chegou mesmo a arredar a terra em volta dele. O guerreiro aproximou-se, desatou o
pedaço de couro de anta que lhe cobria a boca, meteu dentro o braço, e tirou um boião.
Meu pai estava trêmulo. O guerreiro desatou lentamente o couro que tapava o boião. Era um líquido
amarelado, de um cheiro acre e singular.
— Quem bebe isto, um gole só, nunca mais morre.
55 — Oh! bebe, bebe! exclamou meu pai com vivacidade.
— Não, disse ele; Pirajuá não bebe, Pirajuá quer morrer. Está cansado, viu muita lua, muita lua. Pirajuá quer
descansar na terra, está aborrecido. Mas Pirajuá quer deixar este segredo a guerreiro branco; está aqui; foi feito
por um velho pajé de longe, muito longe... Guerreiro branco bebe, não morre mais.
Meu pai fechou depois a boca da mesma igaçaba, e repôs a pedra em cima. O primeiro clarão do sol vinha
60 apontando. Voltaram para casa depressa; antes mesmo de tomar a rede, Pirajuá faleceu.
Meu pai não acreditou na virtude do elixir. Era absurdo supor que um tal líquido pudesse abrir uma exceção
na lei da morte. Era naturalmente algum remédio, se não fosse algum veneno; e neste caso, a mentira do índio
estava explicada pela turvação mental que meu pai lhe atribuiu.
Tempos depois, adoeceu, e tão gravemente que foi dado por perdido. O curandeiro do lugar anunciou a
65 Maracujá que ia ficar viúva. Meu pai não ouviu a notícia, mas leu-a em uma página de lágrimas, no rosto da
consorte, e sentiu em si mesmo que estava acabado.
Alta noite, lembrou-se do elixir, e perguntou a si mesmo se não era acertado tentá-lo. Já agora a morte era
certa, que perderia ele com a experiência? Quem sabe, dizia ele consigo, se os homens não descobrirão um
dia a imortalidade, e se o elixir científico não será esta mesma droga selvática? E, pensando assim, resolveu
70 transportar-se ao lugar, à margem do arroio, tirou o boião, e bebeu metade do conteúdo. Ele tornou a guardar o
boião. Na seguinte manhã estava bom...
Convém dizer que em todos os países por onde andara tinha ele exercido os mais contrários ofícios: soldado,
advogado, sacristão, mestre de dança, comerciante e livreiro. Chegou a ser agente secreto da Áustria, guarda
pontifício e armador de navios. Era ativo, engenhoso, mas pouco persistente, a julgar pela variedade das coisas
75 que empreendeu; ele, porém, dizia que não, que a sorte é que sempre lhe foi adversa.
— Direi somente que ele achou-se em França por ocasião da revolução de 1789... Em 1808 achamo-lo em
viagem com a corte real para o Rio de Janeiro. Em 1822 saudou a independência; e fez parte da Constituinte;
trabalhou no 7 de Abril; festejou a Maioridade; há dois anos era deputado.
— A alma de meu pai chegara a um grau de profunda melancolia. Nada o contentava; nem o sabor da
80 glória, nem o sabor do perigo, nem o do amor. Tinha então perdido minha mãe, e vivíamos juntos, como dois
solteirões. Vegetava consigo; triste, impaciente, enjoado. Nas horas mais alegres fazia projetos para o século
XX e XXIV, porque já então me desvendara todo o segredo da vida dele. Não acreditei, confesso; e imaginei que
fosse alguma perturbação mental; mas as provas foram completas, e demais a observação mostrou-me que ele
estava em plena saúde. Só o espírito, como digo, parecia abatido e desencantado. Um dia, dizendo-lhe eu que
85 não compreendia tamanha tristeza, quando eu daria a alma ao diabo para ter a vida eterna, meu pai sorriu com
uma tal expressão de superioridade, que me enterrou cem palmos abaixo do chão. Depois, respondeu que eu
não sabia o que dizia; que a vida eterna afigurava-se-me excelente, justamente porque a minha era limitada e
curta; em verdade, era o mais atroz dos suplícios. Tinha visto morrer todas as suas afeições; devia perder-me
um dia, e todos os mais filhos que tivesse pelos séculos adiante. Tinha provado tudo, esgotado tudo; agora era
90 a repetição, a monotonia, sem esperanças, sem nada. Tinha de relatar a outros filhos, vinte ou trinta séculos
mais tarde, o que me estava agora dizendo; e depois a outros, e outros, e outros, um não acabar mais nunca.
Enfim um dia, como eu fizesse a alguns amigos uma exposição do sistema homeopático, vi reluzir nos olhos
de meu pai um fogo desusado e extraordinário. Não me disse nada. De noite, vieram chamar-me ao quarto dele.
Achei-o moribundo; disse-me então, com a língua trôpega, que o princípio homeopático fora para ele a salvação.
95 Bebera o resto do elixir, e assim como a primeira metade lhe dera a vida, a segunda dava-lhe a morte. E, dito
isto, expirou.
O coronel e o tabelião ficaram algum tempo calados, sem saber que pensassem da famosa história; mas a
seriedade do médico era tão profunda, que não havia duvidar. Creram no caso, e creram também definitivamente
na homeopatia. Narrada a história a outras pessoas, não faltou quem supusesse que o médico era louco; outros
100 atribuíram-lhe o intuito de tirar ao coronel e ao tabelião o desgosto manifestado por ambos de não poderem
viver eternamente, mostrando-lhes que a morte é, enfim, um benefício. Mas a suspeita de que ele apenas quis
propagar a homeopatia entrou em alguns cérebros, e não era inverossímil. Dou este problema aos estudiosos.
Tal é o caso extraordinário, que há anos, com outro nome, e por outras palavras, contei a este bom povo, que
provavelmente já os esqueceu a ambos.
ASSIS, Machado. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994 (texto adaptado).
Segundo os preceitos da gramática normativa, considere as seguintes assertivas do texto 1:
I. Em “[...] chegara à vila, dez ou doze dias antes” (linha 9), a ocorrência do acento crase justifica-se, pois o verbo anterior, regente, exige a preposição “a” e o termo posterior exige o artigo “a”.
II. O segmento “[...] foi à rede de meu pai” (linha 37) pode ser adaptado para “[...] foi até a rede de meu pai” sem prejudicar a correção e o sentido original, visto que exemplifica o emprego facultativo da crase.
III. O sinal indicativo de crase, em “E pensando assim, resolveu transportar-se ao lugar, à margem do arroio, tirou o boião, e bebeu a metade do conteúdo.” (linhas 69 e 70) é um caso obrigatório em razão da locução prepositiva presente no segmento e apresenta um verbo bitransitivo.
Está(ão) CORRETA(S) apenas a(s) assertiva(s):
I.
II.
III.
I e II.
II e III.
Afirmação I: Incorreta. De fato, o verbo “chegara” exige a preposição “a”, no entanto o substantivo “vila” não exige o artigo “a”. O artigo foi empregado devido à necessidade de se representar a “vila” como um lugar específico, o qual já havia sido mencionado no texto e que agora está sendo retomado por meio da conexão entre este e aquele.
Afirmação II: Correta.
Afirmação III: Incorreta. O acento denotativo de crase é obrigatório, porém não em razão de uma locução prepositiva, mas para diferenciar a simples referência a uma margem “a margem” da expressão “à margem” que significa estar ao lado da margem ou próximo a ela. Além disso, não há no segmento um verbo bitransitivo.
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